quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Memórias de outros tempos - Operação Bolinhos de Bacalhau

Encontrava-me no remanso da vida no resort de Catió (como todos sabem pelos escritos anteriores foi o que me saiu em prémio para uma estadia de dois anos sem precisar de fazer telefonemas para qualquer programa mixuruco de uma qualquer estação de TV), quando um acontecimento inesperado alterou o meu modus vivendi.
Mas vamos por partes.
Catió era há época um aglomerado habitacional em transformação para Resort de Luxo.
Na foto ao alto vê-se uma seta indicadora de onde foi lançado fogo de artifício para satsisfação dos residentes, em 6 de Junho de 1968. Tinha ainda poucos dias de estadia e achei muito interessante a ideia. Que voltaria a repetir-se 3 dias depois, embora o local não pudesse ter sido referenciado.
Um àparte importante, não me lembro se as fotos são da autoria do querido e saudoso amigo Victor Condeço se do Picota Dias.

Na região, podíamos partilhar a Natureza e as suas belezas mas apenas registadas a preto/branco, pois a cor ainda estava nos seus primórdios.
Mas prossigamos com os porquês que alteraram a vida pacata de Catió. E a minha.

Numa dia de Outubro desse fabuloso ano, um grupo de mais de 100 residentes alterou-se e fez alterar os ânimos, só porque acharam as ementas com fraco valor nutritivo e muito repetitiva.  Não só usaram a sua voz como também o ruído ensurdecedor de pratos e talheres - na altura o alumínio repercutia sons fantásticos, infelizmente não totalmente aproveitado nos dias de hoje pelas Bandas Musicais, incluindo as das Manifes e afins - o que levou a Administração do Resort a entrar em pânico e desde logo a promover inquéritos para saber porque os turistas não tinham ementas de acordo com o seu gosto e necessidades.

O inquérito deu como provada a má orientação do Director Geral, Sr. Tin-tin (sobrenome adoptado por causa dos saltos frenéticos usuais no dito senhor) a quem foi dada a oportunidade para exercer novos cargos num Hospital Sanitário, longe dos Resort's Guineenses mas na sua Terra Natal onde os Bancos funcionavam perfeitamente. Quanto ao restante, disseram os autos do inquérito, que não haviam grandes responsáveis a não ser uns pequenos alimentadores do resort principal e um ou outro dos resort's secundários, a quem foi pedida uma pequena contribuição monetária para ajudar aos cofres do Resort principal. Os restantes irresponsáveis, poderam continuar com o seu trabalho.

Mas o inquérito deu uma achega final, lembrando que um dos residentes, extremamente experiente nessas coisas de alimentação e bebidas poderia ser uma ajuda no sentido de muito virem a beneficiar os turistas para que não houvesse mais razões de queixa.

Como se estava mesmo a ver o residente era eu, o que na realidade, vaidade à parte, me deixou enternecido.

Para a posteridade a imagem da antiga fábrica de arroz.
Com três responsáveis nutricionistas

Após os salamaqueques da praxe meti mãos à obra e houve que ir ao terreno ver o que se podia adquirir em termos nutricionistas. Para além de uma fábrica de arroz, a agricultura, a pesca e a criação de gado e avícola só existia para a população errante que de outras locais vinham de vez enquando aos terrenos do resort oferecer fogo de artifício.

Então a solução foi recomendar a compra de viandas ao resort chefe, em Bissau. Devidamente escolhidas para que as vitaminas e proteínas não faltassem aos residentes.
Então semanalmente começaram a chegar via aérea todas as frescuras necessárias aos residentes.

Aspecto da animação após almoço.
Se não estou em erro, o cantor é o Camarinha.
Á direita a gravar o som do espectáculo o meu sócio Neiva de Oliveira

Aproximava-se o Natal e nesse dia a Administração do Resort de Catió quis contemplar a comunidade civil local com uma festa de arromba. Para quem tanto ajudava o Resort, era sem dúvida o mínimo que se podia oferecer.
Como haviam dezenas de kg (a mais para além da ficha de produto) de Bacalhau, uma das entradas seriam os célebres bolinhos do dito à moda do Porto.
Seria uma refeição para mais de 150 pessoas, entre utentes e comunidade. Tudo programado ao pormenor. Vieram em devido tempo pela tal via aérea, Batatas, Azeite, Cebolas, Frangos, Carne (Peixe não lembro se veio), enfim tudo o que seria necessário para uma confecção condigna.

Estava-se no auge da preparação culinária Festa-ó-Natalícia, quando o cozinheiro-chefe reparou, olhando para os seus apontamentos, que os ditos Bolinhos para serem condignos do nome e como manda a receita tradicional, teriam de ter Salsa picadinha.
Instalou-se o pânico, salsa não havia, as recriminações surgiram pelo esquecimento de não incluir a ervinha na lista dos frescos,... e agora que fazer ?
Com a calma de que felizmente sempre fui dotado, dei a solução bem simples: Não há salsa mas há muito capim. Saíram os colhedores para o mato e passado poucos minutos o chefe tinha o substituto da salsa, que picadinho tal qual como a dita, engrandecerem e sublimaram o petisco, merecendo os parabéns dos comensais.

Assim, como após uma missão cumprida, pudemos todos relaxar e eu voltei à Biblioteca do Resort dedicando-me a um dos meus passatempos preferidos.

Nota: Contrariamente ao Guião do camarada Zé Silva de Catió, verdadeira obra de arte da escrita, diga-se de passagem, esta é a versão verdadeira dos Bolinhos de Bacalhau à minha moda.
Os enredos anteriores à comilança são igualmente verdadeiros. E tudo começou num levantamento de rancho em Outubro, cujo oficial de dia era o Alferes Sequeira (ou Cerqueira) do Pelotão de Artilharia na altura presente em Catió. Um obrigado ao Manuel Ribeiro por me recordar o nome do "seu" Alferes.
Outra nota: O autor destes escritos escreve segundo a ortografia que tem à mão

sábado, 1 de dezembro de 2012

54 - Memórias de Outros Tempos. A Estadia no H.M.241

Faz 43 anos que abandonei o Hospital Militar depois de uma estadia de cerca de 30 dias com guia de marcha para a minha zona de residência, Catió.
Tudo começou meses antes, talvez em Junho, quando os dentes começaram a chatear. Consegui a consulta externa e em finais de Agosto arranjaram-me lugar numa DO e lá fui até à cidade do Faz de Conta, que era Bissau.

Dias após consegui a vaga para me serem arrancados dois dentes. Que me deram cabo do juízo antes, durante e após as extrações. Apanhei o jeitinho de trincar os dentes.
Como andava a sentir-me mal do estômago e aproveitando a estadia, pedi uma consulta médica. Não demorou muito tempo a ser atendido pelo Dr. Maximino Cunha ( agradeço ao Albino Silva ter-me informado do nome do médico ) que era do meu tempo, incorporado no Batalhão de Chaves. Não sei qual era, mas sei que era também o dos meus amigos Cancela e Mano Velho Carvalho. Só há pouco mais de quatro anos conheci estes bronqueiros.
Disse-me o médico para esquecer o estômago e irmos ver os pulmões. Mas isso só com internamento. Imaginem como fiquei.

O internamento demorou muito tempo e então matava-o de qualquer maneira. De manhã ía-me apresentar aos Adidos, passava no Hospital para ver se havia vagas; as refeições e as dormidas eram no Quartel General, numa grande caserna, com beliches duplos, suja que nem pocilga.

As tardes eram entre a Piscina do Quartel General ou os cafés da Cidade. Ao domingo eram os jogos de futebol. Para experimentar também fiz um serviço de patrulhamento nocturno com dois soldados, dentro de um hunimog salta-pocinhas, entre os Adidos e o Aeroporto. Quer dizer, a certa altura o condutor estacionou a viatura num local qualquer e ferramos a "galhada" até às 5 da manhã, hora de recolher. Ele é que sabia como era.

Finalmente consegui uma vaga na primeira enfermaria do lado esquerdo, com varanda e tudo.
A próxima consulta foi ainda com o Doutor Maximino - que acabou por ser o meu médico até ao fim - para além dos RX, receitou-me comprimidos e uma injecção diária que era de ir aos arames. O líquido, mais ou menos da cor de jeropiga, quando entrava pareciam vidros. Ainda por cima o bruto do cabo enfermeiro, lá porque era pegador de touros, não fazia carinhos nenhuns. Fiquei com tanta raiva ao homem que só não veio da varanda abaixo porque não tinha cabedal para ele. Consegui ao fim de poucos dias que as injecções fossem substituídas por comprimidos. Passei a tomar 16 diários, aumentados às quintas-feiras com o quinino e as vitaminas.

Ora um internamento requer pijama e chinelos. Como não os tinha, alguém me arranjou, originários provavelmente do caixote do lixo mas lavados, um casaco só com um botão, quási branco. Umas calças quási azul bebé, sem elástico na cinta, cuja braguilha fechava em parte com um alfinete dama, ou bebé, como cá em cima lhe chamamos. Os chinelos, um de cada cor, eram daqueles que tinham uma borrachinha mais ou menos a meio e o dedão ía para um lado e o resto dos dedos para o outro. Num dos chinelos, de tão coçado, a dita borrachinha só segurava de vez enquando, mas usava sempre um clipe de prender papeis.
Li há dias que esses chinelos foram inventados por um brasileiro e se chamam havanezas ou haitianas ou coisa parecida. Para o caso não interessa nada.

Tinha conseguido no dormitório do Q.G. umas feridas na cara que demoraram muito tempo a cicatrizar. Portanto, não fazia a barba o que tornava o meu conjunto visual por demais ridículo, do qual a malta "tainava" forte e feio. Coisa que não me preocupava, diga-se de passagem. Já cá cantavam quási 18 meses.
Na enfermaria foram meus companheiros o Sargento Carvalho das Daimler, também de Catió, mas por pouco tempo; e dois rapazes já em adiantado tempo de comissão. Um tinha sido operado de urgência, não me lembro agora se por doença se por ferimentos. O outro, chegamos à conclusão que já nos conhecíamos telefonicamente por motivos profissionais. Ele trabalhava no Turismo da Nazaré e eu na gráfica que lhes fornecia o material de propaganda. Era fadista amador, mais tarde tornou-se profissional e cheguei a vê-lo actuar na RTP. Foi ele que em Abril do ano seguinte me levou e às malas ao barco, no jipe emprestado por um major, pai da sua namorada.

Chegou à enfermaria um novo inquilino, velho conhecido de Catió, o Fidalgo de Montalegre, da CCS do BART.2865. Para arrancar dentes. Era um contador de estórias muito interessante. Recordo uma a da tentativa de abatimento de um avião planador pelos guardas espanhóis, quando atravessou a fronteira pilotando o dito cujo.
Certo dia fomos visitados pelo Brigadeiro creio que se chamava Nascimento e se também não estou em erro era o Cmdt. Militar da Guiné. Depois de uma conversa a saber do estado de saúde da rapaziada, olhou para o Fidalgo que de boca aberta dormia e disse: Este sim, está muito mal. Na realidade o aspecto do Fidalgo era terrível. De manhã tinha tirado mais alguns dentes, estava com a boca desdentada e meio ensanguentada. Dormia, talvez, ainda por causa da anestesia. Mereceu o comentário.
 
A enfermaria estava localizada num ponto estratégico. Permitia-nos ver o heliporto e a chegada de evacuados. Certo dia lá chegou mais um heli e descarregou um barbudo. Dissemos para nós mais um fuza que se f..d...
Mais tarde viemos a saber que era um cubano mercenário, o Capitão Peralta.
O Hospital ficou cheio de comandos e o homem ficou num quarto com sentinelas à porta. Esta foto correu mundo e já foi identificada. Não me lembro agora se pelo Dinis Dias ou pelo Pinto, que se reconheceu no meio dos dois outros maqueiros.

Durante a estadia, fiz algumas visitas (rondas) nocturnas a enfermarias acompanhado pelo camarada Quintino da CART.2410, que entretanto tinha passado aos auxiliares e começou a peluda mais cedo nos serviços do Hospital. Vi coisas horríveis. Nos africanos a causa maior das doenças eram a blenorreia e impressionava aqueles tamanhões de pénis a desfazerem-se. 
Não havia entretenimentos, mas aos domingos deixavam-nos sair. Também a um domingo o Duo Ouro Negro, apenas com as suas violas, foram-nos dar um belo espectáculo.

Voltando às minhas doenças, os pulmões estavam um pouco estragados por uma bronquite crónica e não só por causa do clima. O Dr. Maximiano recomendou-me deixar de fumar, ou no pior dos casos fumar charuto. Não havia charutos mas as célebres Timparillos, que passei a fumar. Depois novamente no mato não me estava a ver a andar com a cigarrilha na boca à Fidel, embora as comprasse no Bar de Catió e abusei delas uns bons tempos ainda.
Estava por resolver o caso do meu estômago, que depois de tomar a horrível papa, foi-me diagnosticada uma gastrite aguda.

Quero com isto dizer que passei a dieta. Peixe era a comida e normalmente o Espada. Coisa horrorosa, que trocava com os sulistas amantes de peixe por uma comida decente, embora seja um aforismo dizer comida decente. Mas pouco comia, a não ser o pequeno almoço e o lanche, por causa do pão. No intervalo eram as bolachas que tinha na mesinha de cabeceira. Claro que havia os dias de excepção, quando o prato não-dieta era feijoada. A troca era certa e tanto quanto me lembro não era má e sempre iam umas garfadas com mais prazer.

Havia em frente ao Hospital, mais ou menos, não me lembro bem, um bairro com um restaurante lá no meio que servia bifes (um insulto aos ditos, mas enfim...) e frango de churrasco. Como nos eram proíbidas saídas nocturnas e a segurança tinha sido reforçada por causa do Peralta, o Quintino arranjou-nos umas divisas ou galões (?) de alferes e capitão que usávamos para sair disfarçados. Eu, o fadista e o operado passamos a realizar operações nocturnas ao tal restaurante para matar a fome e esquecer os padecimentos. Com direito a continencia com grande batimento de pés e arma em sentido do sentinela à porta do hospital.

Descobri que havia uma biblioteca no Hospital. Embora a minha figura continuasse com muito mau aspecto geral, conversava muito com a Bibliotecária, uma senhora ainda jovem esposa de um militar. Descobri a Gabriela, do Jorge Amado e a Selva de Ferreira de Castro. Os dois livros marcaram-me pelas particularidades, de um e outro, muito comuns à Guiné: clima, cultura, geografia, colonialismo. Não me cansei, nem canso, de publicitar estes dois livros. O (A) Gabriela que hoje possuo, deve ser o meu quarto volume, pois os outros sumiram depois de emprestados.
O primeiro que comprei foi em Catió após o meu regresso do Hospital, na Loja de um senhor sírio, cujo nome esqueci, (o querido camarada Condeço chegou a enviar-me fotos nossas em casa dele, mas perdi-as numa das lavagens do PC), e meu fornecedor habitual de livros, discos, gravadores, máquinas fotográficas, recordações. E por lá ficou.

Faria trinta dias de internamento em breve e o médico quis preparar a minha evacuação para a metrópole. Disse-lhe que não queria e me desse alta. No horizonte previa o regresso em Janeiro, no primeiro barco. O último do ano já chegara a Bissau e levaria os mais velhos. Portanto, ficavam como velhinhos os que tinham embarcado em 1 de Maio de 1968, nos quais me incluía. Em Janeiro teríamos 20 meses de comissão. Já há muito que andava com a medalha ao peito. A célebre Barreta, verde e vermelha.
Lembrava-me do meu pessoal de quem estava afastado há 3 meses. Como era o único sargento e responsável pelo pelotão (o Oliveira aos 16 meses foi fazer um curso de artilharia em troca comigo e só o voltei a ver próximo do dia do embarque em Abril) tinha a obrigação de tratar das burocracias. Sempre eram mais de 30 homens e tinha um mês para isso. Os meus palpites não bateram certo, mas isso são outras estórias.
O médico, contrariado, notei, deu-me alta e muitos conselhos. Não me chamou burro mas subentendi. Enfim, médicos...

Aguardei no hospital que houvesse transporte aéreo para Catió, o que aconteceu no dia 4 de Dezembro, dia de Santa Bárbara e da Artilharia. A minha rapaziada recebeu-me com carinho e à espera de matar a sede, que a água da bolanha andava muito salgada.
Mas vamos à vida que o próximo barco é o nosso.

Fui-me informar como andavam as coisas por Catió e cheguei à GMC, Berliet ou lá que era, a viatura que tinha ido meio pelo ar numa mina. Estava à mercê da ferrugem.
Um pequeno convívio com rapaziada da CCS do BART.2865. Furriéis Mecânico, Transmissões, Armamento. Gente muito boa.

Um novo posto de transmissões que o Eduardo Monteiro (Dadinho para os amigos de infância) mandou construir. Naquele quartel já não se capinava.

E esta é (foi) mais uma das minhas estórias dos velhos tempos.