domingo, 22 de junho de 2014

47 - A nostalgia da chuva no S. João

Acordei meio não sei como. Talvez porque estamos em tempos de S. João. Festa que desde os meus 14 anos os Pais me permitiam festejar com os amigos. Ora festejar o S. João é essencialmente a noitada de 23 para 24. Os bailaricos, as cascatas, as Fontainhas e a Boavista, o Fogo lançado da Serra (do Pilar).
Em 1967 roubaram-me o S. João. Chorei, talvez não tanto pela falta da noitada, mas porque não me deixaram ir a casa comer a sardinha e o cabrito com a família. Foi a transferência de unidade.
Em Maio de 68 estou muito longe dos meus. Nem sequer sei o que se passa em França onde os estudantes estouram com De Gaulle que para salvar a face convoca eleições antecipadas precisamente para 23 de Junho. S. João. Em Portugal, os estudantes de Porto, Coimbra e Lisboa manifestam-se.
Estamos agora em Junho. A 21 na Avenida Rio Branco, no Brasil, outros estudantes sofrem a violência das forças policiais. No dia seguinte tomam a Avenida, Óscar Niemeyer, Clarice Lispector. Glaube Rocha, Milton Nascimento...
No Vietname as tropas americanas sofrem revezes consecutivos.
Estou no fim do mundo há pouco mais de um mês. A norte da linha do Equador, num pequeno território africano que já pertenceu ao Golfo da Guiné, assim chamado pelos Portugueses de 500.
Estamos mentalmente no S. João da Metrópole. No pequeno território português da Guiné há pequenos Vietname's. Na minha zona, relativamente pacífica vive-se com terror. Os dias 6 e 9 marcaram os militares velhos. "Apanhei" esses dias, mas não entendo nada do que se passa.
Ouço e vejo a chuva cair. Daqui a pouco tenho de vestir o camuflado, reunir o pessoal depois de um lanche feito com sardinhas ou carne de porco enlatadas e um pouco de pão. O desprezo por homens na flor da idade a quem não é dado o mínimo substancial para aguentar condições atmosféricas e do terreno. Mas ainda estou nos meus princípios, sou um "periquito".
Vai ser mais um caminhar por picadas, talvez atravessar bolanhas, defender populações hostis, montar segurança. Chove. É a época das chuvas. Corpos molhados, enregelados, sem abrigos, sem condições. Medo do desconhecido, da noite, dos tufões, do vento, dos raios; tropas ignorantes dos perigos. Fála-se em "cuspideiras" cobras pequenas mortíferas. E das baga-baga, formigas gigantes, vermelhas ou pretas, de cabeças medonhas, guerreiras, piores que balas dos turras. E estes por onde andarão ? será que passam por aqui ? eles atacam na chuva ?
Pessoal impreparado militarmente. Carne para canhão. Gostavam de ver os soldados americanos do Vietname aqui. Como se sentiriam sem comida, sem (ou péssimas) transmissões, sem o seu armamento poderoso ? Nem comparam a diferença de vencimentos, as condições de vida, os descansos periódicos.
Mas nessa altura nem fazíamos ideia das regalias que eles tinham.
Nem soubemos que houve um Maio de 68. Nem as lutas na Metrópole. Muito menos do que se passava no mundo.
Hoje é domingo, há 48 anos era sábado. Vésperas de S. João. E a chuva silenciosa que cai, por agora mansa, trás-me recordações e a nostalgia dos tempos da juventude e de três S. Joões que me roubaram. Que nos roubaram.

Dois meses e meio após o meu regresso, no S. João de 1970, acompanhei os meus Pais e uns amigos na noite e a ver o fogo. Não consegui aguentar nem a multidão nem o fogo.Senti-me mal. O dia passei-o na cama e a tomar uns comprimidos que me tinham dado no barco.  

A foto foi feita no local onde em 6 de Junho de 1968 assentaram as baterias do IN que flagelaram o Quartel e a população de Catió. O meu baptismo de fogo.





2 comentários:

Fernando Gouveia disse...

Não deixando de referir que o texto não é meu mas de um camarada que, como eu esteve na guerra da Guiné, assim o enviei a alguns amigos, pois espelha bem algumas das coisas, aparentemente singelas, de que nos privaram nessa longínqua época. Belo texto, Jorge.

Anónimo disse...

Passei pelo teu blog para ver esta tua última publicação, que adorei.
Vai daqui, deste meu belo Algarve, um especial abraço.